SALA DE LEITURA

IPVA: alienação fiduciária e imunidade recíproca

DA INDEVIDA COBRANÇA DE IPVA, CUJO VEÍCULO SEJA OBJETO DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA, QUANDO O DEVEDOR FIDUCIÁRIO É PESSOA JURÍDICA DE DIREITO PÚBLICO, EM FACE DA IMUNIDADE RECÍPROCA 

por Gabriel Meister

Desde 17/07/2020, ou seja, a partir da publicação do acórdão proferido pelo STF no julgamento do RExt de nº 727.851, em que restou fixada a tese: “Não incide IPVA sobre veículo automotor adquirido, mediante alienação fiduciária, por pessoa jurídica de direito público“, os agentes financiadores e instituições financeiras do País devem estar se perguntando se o racional do voto proferido pelo Min. Marco Aurélio (Relator) poderia ser utilizado nos casos em que a alienação fiduciária ocorre com pessoas não abrangidas pela imunidade recíproca, disposta no artigo 150, IV, alínea “a”, da Constituição Federal, de modo a afastar a cobrança do IPVA também nestes casos.

Por expressa disposição constitucional, a referida imunidade somente se aplica às pessoas jurídicas de direito público, as quais, por força do mencionado dispositivo, são vedadas a instituir impostos sobre o patrimônio, renda ou serviços, uns dos outros.

Assim, uma vez presente a responsabilidade solidária entre o proprietário do veículo e o devedor fiduciário na legislação do Estado cuja cobrança do IPVA esteja sendo intentada, e sendo o referido devedor fiduciário pessoa jurídica de direito público, há que ser obstada a referida cobrança, por força da aplicação da imunidade recíproca, nos termos do acordão proferido pelo STF.

Tal entendimento se justifica porque, até o momento, o IPVA não teve contribuintes e fato gerador definidos por Lei Complementar, nos termos do artigo 146, III, alínea “a”, da Constituição Federal. E, porque o STF, por diversas vezes, já se manifestou no sentido de que na ausência da referida Lei Complementar Federal, as Leis instituídas pelos Estados fariam as vezes daquela, nos termos do artigo 24, §3º, da Constituição Federal. 

No entanto, ao proferir o voto acolhido à unanimidade pelos demais Ministros do STF*, o Min. Marco Aurélio destacou que para aplicação da referida imunidade, torna-se necessário, inicialmente, se atentar para o aspecto material da hipótese de incidência do IPVA trazido pela Constituição Federal, qual seja: “ser proprietário de veículos automotores”, considerando, neste caso, a propriedade em sentido amplo, para abarcar, inclusive, a posse a qualquer título, notadamente, a posse direta sobre o bem.

Para justificar o referido posicionamento, o Min. Marco Aurélio destacou decisão proferida em situação inversa, onde o STF decidiu pela incidência do IPTU em imóvel de propriedade da União cedido a uma concessionária de veículos, pois, naquele caso, embora a União fosse a proprietária do imóvel, o IPTU deveria incidir pois o bem estava em posse (uso e gozo) de terceiro que não dava uma destinação pública ao mesmo.

Ora, diante do racional desenvolvido pelo Min. Marco Aurélio de que para a aplicação da imunidade recíproca há que se observar, inicialmente, a propriedade (aspecto material do IPVA definido pela Constituição Federal) em sentido amplo, considerando, inclusive, a posse direta sobre o bem, poderia tal fundamento ser utilizado nos casos que envolvam pessoas que não detém a referida imunidade?

Se a resposta se mostrar positiva, certo é que as instituições financeiras e agentes financiadores buscarão a aplicação de tal entendimento visando afastar a cobrança do tributo, seja no âmbito administrativo, seja no âmbito judicial, principalmente se considerarmos a alta demanda dos Estados em face daquelas pela cobrança do IPVA não pago por devedores fiduciários que não fazem jus a referida imunidade.

Este entendimento, inclusive, é defendido no voto proferido pelo Min. Marco Aurélio, citando parecer elaborado pelo Professor Hugo de Brito Machado**, veja abaixo:

“O contribuinte do IPVA é o proprietário do veículo, presumindo-se como tal a pessoa em cujo nome o veículo esteja licenciado pela repartição competente. Embora o licenciamento do veículo não seja, do ponto de vista rigorosamente jurídico, uma prova de propriedade, o certo é que como tal vem sendo admitido na prática. Para fins de tributação, aliás, não há qualquer problema em considerar-se o licenciamento como prova da propriedade do veículo. 

Há quem afirme que, tratando-se de veículo adquirido com alienação fiduciária em garantia, contribuinte do IPVA é a instituição financeira credora, até que ocorra a quitação. Assim, o imposto somente seria devido por quem adquire o veículo automotor com alienação fiduciária em garantia depois da quitação.

Não obstante respeitável, esse ponto de vista não nos parece correto. O fato gerador do IPVA, na verdade, é a propriedade do veículo; mas como tal se há de entender o direito de usar e gozar desse bem, ainda que limitado esteja o direito de dispor do mesmo, em razão da denominada alienação fiduciária em garantia.”

Desta forma, uma vez adotado tal racional, a cobrança do IPVA nestes casos deveria se dar em face dos devedores fiduciários, os quais detém o direito de uso e gozo (posse direta do bem) e não dos credores fiduciários, ou, ao menos, não de maneira solidária.

Contudo, ao que tudo indica, em relação às pessoas que não detém a referida imunidade, tal discussão ainda persistirá por longos anos, notadamente, se levarmos em consideração parte do voto proferido pelo Min. Alexandre de Moraes, no mesmo julgamento, cujos trechos são destacados abaixo:

 “Logo, tem-se que na alienação fiduciária a instituição financeira detém o domínio resolúvel do bem dado em garantia enquanto não quitada a dívida.

O devedor, por sua vez, enquanto não quitada a dívida, terá apenas a posse direta, figurando como verdadeiro depositário do bem dado em garantia, adquirindo a propriedade imediatamente após quitação do débito.

Em relação ao veículo, o artigo 155, III, da CF/1988 dispõe que é da competência dos Estados e Distrito Federal a instituição de imposto sobre a propriedade do veículo.

(…)

Diante desse cenário, o Estado de Minas Gerais editou as Leis Estaduais 12.735/1997, 14.937/2003 e 19.988/2011, que prevêem a responsabilidade solidária quanto ao pagamento do IPVA entre o proprietário do veículo e o devedor fiduciário (…).

A questão que se coloca sobre debate, portanto, é saber se, figurando o Município como devedor em contrato de alienação fiduciária de veículo automotor, poderá haver incidência do IPVA.

Conforme mencionado, nos contratos de alienação fiduciária, o bem permanecerá sob a propriedade resolúvel do Banco, embora o devedor se mantenha na posse direta do bem.

Ora, se as Leis Estaduais trouxeram previsão expressa no sentido de que haverá responsabilidade entre o proprietário e o devedor fiduciário para o pagamento do tributo, é clara a violação ao artigo 150, VI, “a”, da CF/1988, caso o Município figure como devedor fiduciário.”

Como se infere dos trechos do voto do Min. Alexandre de Moraes (acima destacados), a questão (cobrança de IPVA de devedor fiduciário) teve por objeto, única e exclusivamente, a análise sob o enfoque na imunidade recíproca, considerando-se, no caso, que o devedor fiduciário era pessoa jurídica de direito público, no caso, o Município de Juiz de Fora/MG.

Contudo, ao que tudo indica, em relação às pessoas que não detém a referida imunidade, tal discussão ainda persistirá por longos anos, não tendo esta notícia a intenção de esgotar o tema, mas apenas lançar a questão para eventuais apontamentos de seus leitores.

_____________________________________
*Com voto em separado pelo Min. Alexandre de Moraes.
**(Curso de Direito Tributário. 35ª ed. São Paulo: Malheiros Editores. 2014, p. 397)

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